quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Quero encarar Hilda Hist

 


Renata de Souza*

 

Há pouco tempo fui interrogada sobre o sentido da escrita em minha vida. - "Por que você escreve?" Inicialmente, não soube responder. Não tinha uma resposta elaborada. Ler, foi algo natural. Cresci numa família que estimulava a leitura, de tudo: imagens, rótulos, revistas, placas de trânsito, livros, gibis, jornais... Escrever é ato imperativo. Eu apenas me apropriei da ideia. Uma necessidade. Uma forma de estar, de elaborar minhas percepções sobre o gesto de existir, minhas crenças, dúvidas, meus signos, afetos. Eu não planejo a escrita, mas em determinados momentos, ela se impõe a mim. As palavras me rondam. Escrevo como quem habita um território muito pequeno que necessita de alargamento. A potência criadora da palavra me atrai, mas também a energia para romper limites pré estabelecidos. A palavra transgressora. Que encara os ritos e torna possível a ruptura com o não desejável, os desconfortos.

Recentemente, recebi o convite para integrar a Academia de Letras, Arte, Cultura e Humanidades de São José de Ubá. Alegria. Parte de minha história pessoal está ligada a essa aldeia, minhas referências paternas. Hoje, recebi um presente do presidente, quando, através de uma mensagem me diz. - "Sua patrona Nacional é Hilda Hilst". Gratidão. Orgulho. José Inácio, você acertou em cheio! E é a própria Hilda que me oferece a resposta para perturbadora pergunta.  Por que escrevo?

"Quando você chega a um limite extremo, você procura alguns caminhos de salvação". Escrevo como quem abre caminhos. Auto remição.

 

* Historiadora, professora e cronista


Nova acendedora do Pavio Curto, Renata de Souza Silva nasceu em 14 de setembro de 1971, em Valença, RJ, sendo a primeira filha de Sérgio Alves da Silva e Maria Teresa de Souza Silva.

A condição de engenheiro civil do pai, fez com que durante a infância, vivesse em diferentes cidades, pequenas e grandes, experimentando realidades diversas. Das brincadeiras de pique, roda, passeios a cavalo, rodas de violão às noites de sábado quando saia com amigos para dançar nas boates e ouvir um bom Rock. Das escolas tradicionais, inclusive religiosas, às escolas onde o conhecimento era construído sem a necessidade de ser pontuado. Aprendeu a ler muito cedo. De palavras soltas a rótulos de produtos, livros, gibis, jornais, revistas. Uma paixão.

Em 1997, concluiu a Faculdade de História, sendo especialista em História do Brasil. É professora da rede pública de ensino e tem a sala de aula como um espaço sagrado para elaboração e troca de conceitos com seus alunos do Ensino Médio, no Colégio Estadual Dez de Maio, na cidade de Itaperuna, onde reside junto a Clarisse e a Isadora, suas filhas, companheiras de vida e parceiras nos sonhos.

Já na juventude iniciou a escrita das primeiras crônicas, impressões, experiências, afetos e tarefas do cotidiano registradas em agendas, folhas avulsas de cadernos. Nunca deixou de escrever. Atualmente, desenvolve e apresenta sua escrita por meio das redes sociais.

Bem-vinda!!💣

domingo, 14 de agosto de 2022

O dia em que conheci Carlos Drummond e Jorge Amado

Por Mario Lucio Machado Melo Jr.



Foi numa tarde da primavera de 1973, que meu amigo Isaías telefonou para reunirmos os colegas de nosso grupo de jovens católicos na casa dele, no Morro da Viúva, Rio de Janeiro. Eu morava próximo e cheguei logo no apartamento do Isaías, que era filho do imortal da Academia Brasileira de Letras, Odylo Costa Filho. Quando, repentinamente, tocou a campainha e entrou na sala de estar um senhor magrinho, calvo, cabeça desproporcional ao corpo franzino. Sem dúvida nenhuma era o poeta Carlos Drummond de Andrade, que cumprimentou todos com grande tranquilidade, se juntou ao nosso grupo e perguntou onde estava o Odylo Costa. Alguém explicou que ele fora encontrar com seu editor no Centro da cidade e que estaria de volta no final da tarde. O poeta se sentou numa cadeira de balanço e nos olhou com um sorriso tímido. Todos estávamos de boca aberta e visivelmente emocionados com a surpresa. 

Rompendo a atmosfera de silêncio constrangedor, perguntei qual era, para ele, o maior poeta de todos os tempos. Ele, com toda calma e humildade respondeu: “Sem dúvida alguma é Fernando Pessoa”! Caminhou até a biblioteca particular do dono da casa, demonstrando grande intimidade, e pegou um livro de poemas de Fernando Pessoa e começou a escolher o que ele achava melhor. Enquanto isso, fizemos uma roda em volta de sua cadeira de balanço. Ao invés de ler, pediu para que cada um dos jovens do grupo lesse e, além de ensinar a recitar no tempo e ritmo certo ainda explicava o contexto e situação de cada poesia. Foi uma aula perfeita de poesia viva, nunca vou esquecer aquela cena.

Jorge Amado

Repentinamente toca a campainha novamente e entra um homem grande, moreno, de bigode, que logo reconheci se tratar do escritor Jorge Amado, pois estava lendo sua trilogia “Subterrâneos da Liberdade”, romance que mostrava a resistência política durante a ditadura de Getúlio Vargas. Pensei: que coincidência! Meu coração batia acelerado, parecia que eu havia acertado na loteria. Perguntei ao Isaías se ele também estava esperando o pai dele e ele disse que certamente ele estava esperando sua filha Paloma chegar do trabalho, já que ela era casada com seu Irmão Pedro. 

Uma das meninas de nosso grupo foi para a janela da varanda do apartamento, sendo seguida pelo ilustre escritor. Fiquei observando os dois quando percebi que a colega estava incomodada com a aproximação do escritor. Fui em direção a eles e olhando bem em seus olhos, do alto de meus impetuosos 17 anos, falei: “Estou adorando a leitura de 'Subterrâneos da Liberdade'. Você foi bastante corajoso ao mostrar os horrores da repressão ocorrida durante a ditadura Vargas e participar da resistência”. Ele, desviando o seu olhar para a Enseada de Botafogo, com um semblante perdido no tempo, disse: “Foram arroubos da juventude. Hoje já não acredito em nada daquilo”. 

Aproveitando a distração dele, passei a mão no ombro de minha colega e a tirei daquela situação que não parecia confortável a ela: “Sabe quem era aquele senhor?” e já respondi logo: “Era Jorge Amado, o grande escritor”. Ela, com toda a indiferença juvenil e desconhecimento literária das pessoas não apresentadas aos livros respondeu: “Era um velho muito do enxerido e cheio de conversa mole pro meu lado. Quem gosta de velho é naftalina. Vamos sair hoje a noite para dançar”? Como eu estava muito decepcionado com meu herói missivista e se tratava de uma ruivinha de olhos azuis, com lindas sardas nas bochechas, não resisti aos seus encantos e fomos dançar disco music. Nesse dia fui de Zeus a Hades em poucas horas, mas, foi inesquecível.


Ilustração: Cacinho

domingo, 1 de maio de 2022

O dia que conheci Vinícius de Moraes

Por Mario Lucio Melo



Eu estudava no Colégio São Bento, situado ao lado da Igreja e do Mosteiro de mesmo nome, na Praça Mauá, no Rio de Janeiro. Tinha em torno de 13 anos e nosso professor de Português, se não me falha a memória se chamava Almir, dividiu a turma em cinco grupos e sorteou cada um com uma poesia de algum autor relevante da literatura brasileira. Fomos brindados com a poesia A Bomba Atômica de Vinícius de Moraes, publicada em 1954, no Rio de Janeiro. 

O grupo recebeu a tarefa com muito entusiasmo e começou a correria para comprar o livro que continha o poema. Não existia a Internet e me lembro muito bem que devorei todas as poesias da “Antologia Poética de Vinicius de Moraes”. Coisa boa, pois não parei mais de ler poesias até hoje, ano em que faleceu o maior deles, em minha opinião, Thiago de Mello, o poeta da liberdade. A partir daí foi iniciado o debate no grupo, sobre o significado da poesia. Cada um dos cinco membros, tinha uma opinião fechada sobre a poesia que tem três partes. Convocamos adultos para opinarem. Piorou a confusão pois tentaram impor suas opiniões afirmando maior conhecimento, maturidade, cultura, “saber” etc, até que um dos membros disse: 

— Meu pai conhece o Vinícius e talvez possa marcar um encontro com ele.

 Ficamos agitados com a possibilidade de encontrar pessoalmente o Poeta e tirar todas as nossas dúvidas e, mais ainda, tietar agora o nosso mais novo ídolo.

Qual não foi nossa surpresa quando veio a confirmação do encontro: 

— Vai ser na quinta-feira, as oito horas da manhã na casa dele! — disse o colega que havia se encarregado do assunto. 

Reli a poesia dezenas de vezes buscando capturar, nas entrelinhas, alguma intenção poética oculta e sempre ficava embatucado com as comparações de partes femininas e a força do sexo. 

Chegamos pontualmente às 8 horas no apartamento de Vinicius de Moraes, tocamos a campainha e, quando a porta foi aberta, estava nos olhando uma linda moça de uns vinte e poucos anos. Ela disse: 

— Podem entrar, ele está esperando vocês! No corredor, é a segunda porta a direita.

Quando entramos na referida porta, estávamos no banheiro do Poetinha. Ele, em uma banheira de água com espuma e um grande copo de whisky. Nos acomodamos nos aparelhos do banheiro, por recomendação dele, e passamos a narrar a situação da falta de consenso entre as interpretações da sua poesia. Ele nos perguntou quais eram as nossas interpretações e após ouvi-las, disse meio sem paciência: 

— Não é nada disso! Vocês sabem que fui diplomata e, quando servi ao país na França, percebi que a bomba atômica era uma arma que foi feita para nunca mais ser usada, depois do que foi feito no Japão. Passou a ser uma garantia de segurança dos blocos antagônicos (na época o mundo estava dividido entre a Otan e o Pacto de Varsóvia), para que ninguém iniciasse uma guerra nuclear onde o planeta seria devastado. Por tal motivo, quem a possuísse teria a garantia de que nenhum outro país tivesse a coragem de invadir. Então ela era uma arma da paz e isso estava explícito na Parte II da poesia, o resto era puro lirismo.

Pediu mais um copo de uísque para sua companheira, que nos olhava da porta do banheiro. Depois dessa explicação, nos disse que havia acabado de chegar de um encontro com amigos e precisava dormir um pouco. Agradecemos a atenção e saímos contentes por termos resolvido o trabalho do colégio. Porém a contradição entre uma arma capaz de destruir o mundo e, ao mesmo tempo, capaz de proporcionar a paz ficou em nossas cabeças e provocou muita reflexão sobre a vida e a essência contraditória das coisas. Isso me acompanhou até quando estudei sobre a dialética da natureza, aliás assunto fundamental para ser explorado por quem deseja entender todo o processo de nossa existência. Assim, bom estudo!!!


Ilustração: Cacinho

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

“Eu não tenho ‘homens’, general!”

 

Ilustração Cacinho

Por Ernesto Germano Parés 


Falar sobre o Nove de Novembro é uma tarefa difícil, ainda mais quando precisa não alongar. A dificuldade maior é esquecer ou ser injusto com algum companheiro que participou daquela greve. Mas vamos tentar ser mais “leves” na narrativa.

Posso assegurar, sem dúvidas, que o Nove de Novembro de 1988, na verdade, começou antes. Com pouca chance de errar, arrisco-me a dizer que tudo começou numa tarde de agosto durante uma reunião normal da diretoria do Sindicato. Os diretores faziam os informes do que acontecia na Usina e a avaliação apresentada era de uma situação de insatisfação geral entre os metalúrgicos. 

Ao final da reunião, a diretoria concluiu que – concretamente – só havia a possibilidade de lutar pela reposição da URP e pelos atrasados do Plano Bresser, e que se iniciaria imediatamente essa campanha. De toda forma, considerando o período retroativo, se a CSN fizesse o pagamento dos atrasados da URP daria um bom dinheiro extra para os trabalhadores. E criou-se um lema para a campanha do pagamento da URP: “Buscar a castanha do Natal”. A ideia era forçar a empresa a fazer o pagamento antes do final do ano.

        

Sexta-feira, dia 4 de novembro

Uma Assembleia convocada pelo Sindicato aprovava o início da greve para a segunda-feira (07/11), durante a entrada do turno da noite. Ficou também decidido que seria realizada uma nova Assembleia às 17 horas, para o caso da empresa acatar as reivindicações, evitando a paralisação. 

Domingo, dia 6 de novembro

Havia uma reunião da diretoria do Sindicato já marcada. Serviria para se fazer um balanço do movimento, preparar o boletim que seria distribuído, distribuir as tarefas de cada diretor para a segunda-feira e avaliar a questão das eleições.

Na tarde do domingo, já com novas informações sobre o ânimo dos trabalhadores, ficamos sabendo que havia movimentação no quartel de Barra Mansa e que o exército viria mesmo para a cidade. Era necessário mudar os planos porque a informação era de que as tropas iriam chegar na hora da Assembleia que iniciaria a greve.

Um dos companheiros da reunião fez nova proposta: se o exército vai chegar na hora de começar a greve, então vamos antecipar.


Segunda-feira, dia 7 de novembro 

Tudo começou exatamente como o previsto. Um grupo de diretores e ativistas entrou com um panfleto curto e objetivo: “A Greve Começou”. Imediatamente os vários setores iam aderindo e parando os equipamentos que podiam parar ou preparando os mais delicados para o desligamento. 

Tudo corria tão bem que na hora do almoço, mesmo estando de plantão no Sindicato, saí para almoçar no bar em frente. Todos os diretores do Sindicato estavam na Usina e conversavam com cada um.

Nada aconteceu e a noite correu tranquila. Vez por outra um companheiro telefonava de dentro da Usina para dar informes. Tinha até alguém tocando violão.


Terça-feira, dia 8 de novembro

O movimento começou a mudar de figura na tarde da terça-feira quando o telefone tocou no Sindicato. Atendi a ligação que a telefonista me passou. Era a esposa de um metalúrgico que morava na estrada entre Barra Mansa e Volta Redonda para dizer que vários caminhões com soldados do BIB estavam passando em nossa direção.

No final da tarde da terça-feira já estavam em Volta Redonda vários batalhões e os soldados ocupavam a entrada da Usina com ninhos de metralhadoras, tanques e outros veículos de combate. Faziam uma espécie de cerco na área como se estivessem impedindo os trabalhadores de invadir a CSN e, certamente, isso era apenas uma cena para ser filmada e fotografada para a imprensa do restante do país, dando a impressão de que estavam ali para impedir os metalúrgicos de entrar.

Mas também essa noite transcorreu sem incidentes. 

Quarta-feira, dia 9 de novembro

Na manhã da quarta-feira, dia 9, já sabíamos que as coisas seriam diferentes. Houve movimentação de tropas durante toda a noite, novos batalhões vindos de Resende e outros quartéis chegavam a Volta Redonda. Muitos carros de combate estavam posicionados nas quatro entradas da Usina e os soldados pareciam nervosos. E víamos também, pela cidade, uma inusitada quantidade de soldados da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Veio a tarde, a movimentação no Sindicato aumentou. Estávamos programando um ato público de apoio aos metalúrgicos na entrada da Usina. Haveria músicas e a ideia era permitir que as famílias dos operários enviassem recados para o pessoal pelo carro de som. 

Foi quando os soldados começaram a barbárie na Vila Santa Cecília. A polícia começou a bater no pessoal, na rua, e jogando bombas de gás! Tomaram conta da Vila e invadiram até lojas comerciais procurando o pessoal que estava no Ato!

Isso tudo foi fartamente documentado e filmado. Há vários vídeos mostrando a ação dos soldados no centro da cidade e, inclusive, a TV Manchete chegou a colocar um no noticiário.


A troca de Ulysses que deu certo

Começava a pior parte da história. Pouco depois o Marcelo, vice-presidente do Sindicato, voltou a ligar:

- Ernesto, você precisa fazer alguma coisa aí de fora! Os soldados estão atirando, e não é bala de borracha, não. Os tiros batem no teto da aciaria e furam as chapas... Liga para o Dr. Ulysses e fala também com a imprensa. Está difícil de conter o pessoal... os soldados estão ameaçando invadir a aciaria e aí eu não sei o que vai acontecer...

Foi nesse momento que eu cometi um dos maiores erros da minha vida, mas que acabou dando certo. O Marcelo tinha pedido para eu telefonar para o Dr. Ulysses. Ele estava pensando no Dr. Ulysses Riedel, nosso advogado com escritório em Brasília e presidente do Diap. Mas eu troquei tudo:

- Cidinha, agora liga para o Ulysses Guimarães!

Poucos minutos depois - não me perguntem como - a Cidinha me chamou dizendo que o Ulysses estava na linha. E tenho que admitir que foi inacreditável! Ele já estava em casa, descansando, e me atendeu cordialmente. Passei todas as informações, disse que o Juarez, deputado federal, estava cercado pelos soldados dentro da Usina e que diziam que estavam com ordens para prendê-lo. Falei que os soldados estavam atirando e que já havia muitos feridos entre as pessoas que estavam no centro da cidade. E ele perguntou se eu sabia o nome do comandante. Pediu para desligar e que eu ficasse aguardando outra ligação. Dei para ele o outro número de telefone, que raramente usávamos e estaria mais disponível. 


“Não tenho homens!”

Antes das dez horas, a conversa com Ulysses Guimarães começou a fazer efeito. Quando o telefone tocou, a Cidinha me chamou dizendo baixinho:

- É o general!

Peguei o telefone e estava bastante nervoso. Respirei fundo... Do outro lado, o general José Luis Lopes perguntou com quem estava falando. Acho que mediu bem para saber se valia a pena falar comigo, e, sabendo que não teria um diretor para falar, me intimou:

- Vamos fazer um acordo. Você manda seus homens recuarem e pararem as provocações que eu mando a tropa não invadir a aciaria.

E aqui eu cometi o grande erro! O erro que dá título a esse artigo. Respondi ao general:

- General, eu não tenho “homens”! Lá dentro estão trabalhadores, em greve. Tudo eles decidem lá, entre eles, votando... Eu posso é passar o recado para eles.

Trégua sim, mas com greve 

Ele desligou e eu comecei a achar que tinha feito uma besteira enorme! Mas, poucos minutos depois, ele voltava a ligar para o Sindicato e me perguntava se havia alguém em condições de negociar com ele. Eu respondi que sim e que daria uma relação com os nomes, mas pedi alguns minutos para confirmar e que ele, ao menos, mandasse os soldados pararem de atirar.

Já estava no Sindicato, prontificando-se para qualquer necessidade, o prefeito da cidade, Dr. Marino Clinger. Tentei localizar Dom Waldyr Calheiros, bispo de Volta Redonda, para que fizesse parte da comissão. Ele aceitou imediatamente e eu ainda falei com o deputado federal Edmilson Valentim, que ouvira no noticiário no rádio do carro e mudou o itinerário indo para Volta Redonda. 

Quando um oficial ligou para saber quem iria falar com o general, eu passei a lista: Dom Waldyr Calheiros, Dr. Marino Clinger, Edmilson Valentim e Juarez Antunes. Ele me comunicou o local do encontro – no Hotel Bela Vista – e perguntou se eu iria também. Respondi que não (nem sou maluco!) e que iriam só aqueles, com o motorista do Sindicato.

A trégua foi acertada, os metalúrgicos se retiraram da Usina, mas a greve continuou!


*Jornalista, escritor, produtor de comunicação, consultor sindical, assessor político, militou na Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP) nas décadas e 1969 e 1970.
Nos anos 1980 e 1990, atuou em vários sindicatos. Entre 1984 e 1991, atuou como assessor das áreas administrativa e de imprensa do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, Barra Mansa, Resende e Itatiaia, entidade que congregava os trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a convite do então presidente da entidade, José Juarez Antunes. A partir de 1989, assumiu a edição do boletim do Sindicato, chamado 9 de Novembro, em homenagem aos trabalhadores da CSN assassinados durante a greve ocorrida em novembro de 1988.


Cacinho é Formado pela Faculdade de Cinema e TV da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO/ Juiz de Fora, em 2006, foi responsável pelo Núcleo de Animação da Groia Filmes, até o ano seguinte, quando abriu sua própria produtora, a AGente QUE FEZ – ANIMAÇÕES, também em Juiz de Fora/MG, tem mais de 20 curtas metragens e muitos prêmios em festivais de cinema e animação. Ministra oficinas e cursos de animação em escolas, universidades, clubes e festivais de cinema e vídeo. Foi chargista do jornal impresso TRIBUNA DE MINAS, durante o ano de 2018. Em 2019, funda em sociedade com o chargista André Ribeiro a revista digital DUAS BANDAS E UM CUJUNTINHO, que é uma homenagem a extinta revista BUNDAS do Ziraldo e em 2020 junto com o Coletivo PAVIO CURTO, iniciou os trabalhos de charges, caricaturas, ilustrações e animações para a revista digital de mesmo nome.

 


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Um professor aposentado

Por Cristóvão Villela

Ilustração: Dayse Gomis




- Bom dia, mestre!

- Bom dia, amigo!

- Sabe o Dr. Curatende, ganhou um prêmio de medicina. Você conheceu?

- Sim, desde quando ele frequentava a escola fundamental, foi meu aluno na 5ª; 6ª; 7ª e 8ª séries. Sempre foi bom aluno. Lembro-me muito bem dele, estudou na mesma época do Tiãozinho, jogador de futebol que está lá na Europa, jogando um bolão e recebendo em euros, rs...

- Você também lecionou pra muita gente.

- Verdade.

- E aquela atriz, que está na novela das oito? Lembro-me que falou dela no começo da sua carreira.

- Sim, boa garota. Lembro-me que em uma aula, ela fez uma representação pra justificar uma tarefa não cumprida. Eu logo pensei, essa garota é uma atriz. Não deu noutra. Lecionei também para aquela modelo internacional. Linda, desde criança chamava a atenção, a garotada ficava louca, todos os meninos queriam sentar perto dela. Hoje está bem sucedida para a nossa felicidade. Lecionei para um atleta olímpico, esse acho que não lembra de mim não, mas tudo bem. O importante é que esteja bem e feliz. Houve um garoto que tive alguns arranca-rabos com ele, rsrsrsr, fazia bagunça demais, atrapalhava as aulas, arrumava encrenca com os colegas, esse deu trabalho. Hoje é político, deputado federal, vota em tudo que eu discordo, mas fazer o quê?

- São muitos alunos em uma sala de aula, tem turma com mais de 40, cada um querendo a sua atenção. Depois do dia de muito trabalho, vamos para casa e preparamos as aulas para o dia seguinte, procuramos nos atualizar, pois sempre queremos fazer o melhor, temos que ser um exemplo. As vezes a exaustão nos faz cometer alguns deslizes, dar uma bronca desnecessária, o que nos incomoda por meses.

- Ministrei aulas para muitos advogados, engenheiros, artistas plásticos, bailarinos, pedreiros e empresários, pessoas de muitas profissões. Alguns alunos seguiram caminhos diferentes, tiveram menos sorte, mas não a maioria. Mas a gente fica muito feliz, muito feliz mesmo, quando vemos o sucesso de nossos alunos.

- Poxa professor, você ainda mora no mesmo lugar.

- Sim, na mesma casa, com dificuldade para pagar as contas e para me alimentar como desejaria, mas com muita alegria em saber que a tarefa foi cumprida.


OS FATOS COM OS ALUNOS CITADOS ACONTECERAM NA REALIDADE, APENAS OS NOMES SÃO FICTÍCIOS.



Feliz Dia das Professoras e Professores, a profissão mais nobre de todas, pelo simples fato de que todas as outras só existem porque existem professoras e professores.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

O Barão sempre atual

  

Ilustração Cacinho 

Por Cid Benjamin*

As Forças Armadas estão preocupadas com a deterioração de sua imagem, devido à identificação com o governo Bolsonaro. O desconforto se deveria especialmente devido a charges e piadas, relacionando-as com corrupção. 

Pesquisa recente da Datafolha mostra que 54% das pessoas são contrárias à ocupação de cargos civis por militares. Certamente as trapalhadas do general Eduardo Pazuello na Saúde e a bandalheira na compra de vacinas, que vieram à tona na CPI da Pandemia, contribuíram para tal.

Vantagens materiais de todo tipo - além de identidades no plano ideológico – levaram os militares a mergulharem de cabeça no governo Bolsonaro. Só que isso os deixou na mira das gozações. 

“Entre sem bater”

O Brasil tem tradição de humor na crítica política. Ela vem do Império, quando dom Pedro II era um alvo habitual. Nossa maior figura nesse campo foi Apparício Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé. Seu pseudônimo já era um deboche. Na Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas ao poder, era esperado um tremendo confronto em Itararé – na divisa entre o Paraná e São Paulo. Mas entrou na história como o conflito em que não foi disparado um só tiro. Torelly apresentou-se, então, ao país como o herói da batalha que não ocorreu.

Certa vez seu jornal, “A Manha”, foi invadido por oficiais da Marinha que o espancaram, em represália à publicação de fascículos sobre a Revolta da Chibata. O Barão não se deixou intimidar. Afixou na porta da redação o cartaz: “Entre sem bater”.

Acusado de ligações com o Partido Comunista, Torelly foi preso na ditadura do Estado Novo. Ao chegar ao cárcere da Ilha Grande, recebeu um questionário que deveria preencher. Como seria de se esperar, as perguntas eram idiotas. Uma delas: “Tem vícios secretos?” O Barão não perdoou: “São secretos”, respondeu.

Ele logo se tornou uma figura popular. Em 1947, candidato a vereador no Rio de Janeiro, foi eleito. Seu lema era “Mais água e mais leite. Mas menos água no leite”.

Febeapá 

Na ditadura militar, nossa tradição de humor político se manteve. Sérgio Porto, que assinava coluna na “Última Hora” com o nome de Stanislaw Ponte Preta, foi uma pedra no sapato dos donos do poder. Criou o Febeapá – “o festival de besteiras que assola o país” – para comentar as asneiras diárias. 

Pouco depois foi criado por um grupo de humoristas o semanário “Pasquim”, herdeiro do Barão e de Stanislaw. Submetido à censura de forma intermitente, criou um aviso, publicado na primeira página: “Se este selo estiver aqui, o Pasquim não está sendo censurado”. Quando voltava a censura, o selo desaparecia, claro.

Agora, as estultices do presidente genocida e seus amigos fardados e milicianos fizeram o humor político reaparecer em grande estilo. E com um elemento adicional: a internet e as redes sociais, antes inexistentes, lhe oferecem novos espaços de divulgação.

Para Bolsonaro, reagir à gozação com violência implicaria caminhar para a ditadura. Embora esta seja o regime dos sonhos do capitão, no momento não há condições para implantá-la. O que ele faz, então, é vez por outra processar um humorista. Mas é pior: só aumenta o ridículo. 

Assim, mesmo que o Exército esteja preocupado com o desgaste, não há saída enquanto continuar no colo de Bolsonaro, pois o capitão não vai mudar. Afinal, como dizia o Barão de Itararé, “de onde menos se espera é que não sai nada mesmo”.

*Jornalista

**Artigo também publicado na Revista Fórum


Ao amigo Vicente Melo


Por Clóvis Lima

Fico imaginando o que o Vicente Melo falaria dele mesmo nesse momento, pois não sei se o texto que me atrevo a escrever estaria a sua altura. Vou me arriscar.
Talvez ele fizesse uma piada dele mesmo com aquele humor inquieto e mordaz.
Talvez ele esteja fazendo isso agora mesmo, rindo e confabulando ideias.
Vicente é assim, uma figura inquieta e às vezes indecifrável.

Conheci Vicente quando trabalhava na In Laser, um bureau de impressão na Vila Santa Cecília, ainda no Edifício CBS II, no sétimo andar. Acho que foi em 1992. À primeira vista, ele não impressionava. Chegava e ficava como quem estivesse já ali, como parte do ambiente. Sempre elegante com sua camisa social, falando pouco e se mostrando atento aos detalhes. Mas bastava alguns minutos de convivência para se tornar um grande amigo dele. Elegante não só na vestimenta, elegante também quando dava pitaco em nosso trabalho. Parecia que estava sempre um passo a nossa frente. Vejo Vicente Melo como um apaixonado pelo mundo das ideias, apaixonado pela criatividade, enfim, um apaixonado que também sabia nos apaixonar pelas ideias. Foi na In Laser que também conheci Cristóvão Villela, uma espécie de continuação do Vicente, digo isso pois o Cristóvão conseguia traduzir lampejos de ideias do Vicente Melo para se transformar em charges sofisticadas.

A face mais indecifrável do amigo foi sua vida durante a ditadura. Nunca me revelou muita coisa. O pouco que sei, por respeito a ele vou suprimir desse texto. Se ele não contou, quem sou eu para contar? Mesmo sendo ele mais um dos muitos perseguidos nos anos de chumbo, dificilmente transparecia. Vicente sabia viver o momento presente e sem querer nos ensinou isso. Ele sabia se levantar. Teve na década de 90 que conviver com a perda se seu filho Rafael, um grande cara que tive o prazer de conhecer, alegre como o pai. Vicente perdeu seu filho mais velho e acabou nos adotando a todos.


Engraçado como tudo parecia mais leve quando eu o encontrava na Vila, na padaria ou nos eventos culturais. Ainda me lembro quando em 2016, após o golpe na Dilma, ainda apreensivo e sem chão, encontrei-o na padaria no Aterrado e trocamos algumas ideias sobre o que havia acontecido. A serenidade dele era de quem já havia testemunhado parte da história do Brasil e por isso deixava escapar dos olhos uma esperança. Já lá em 2016 ele me disse com todas as letras que aquele era só o começo, que Lula seria preso e que a tendência era, por hora, a coisa piorar. É bom grifar o “por hora” nesse texto pois ali estava sua esperança de que o mal fosse passar. Vai passar, sim, Vicente. Muita coisa passa. Nossa amizade não.


Os soluços, o intestino preso e o Cabo Tenório

Ilustração Clovis Lima

Por Cid Benjamin

Em outubro de 1968, em plena ditadura militar, um congresso da União Nacional de Estudantes (UNE) foi localizado pela polícia em Ibiúna, São Paulo, e quase mil estudantes presentes acabaram presos. 

O episódio foi antes do AI-5, que só aconteceria em dezembro do mesmo ano, e a repressão ainda não era a mesma dos anos de chumbo. Não havia condições políticas para manter aquela multidão de estudantes presos. Afinal, a acusação era apenas de participar de uma reunião. Depois de um ou dois dias no xadrez, foram todos enviados para os estados de origem e, pouco depois, libertados. Apenas cerca de dez ou onze, identificados como os líderes mais importantes, foram separados dos demais e ficaram mais tempo na cadeia. 

O grupo com os supostos líderes foi transferido inicialmente para um quartel do Exército em Santos, no litoral paulista. A unidade militar era comandada pelo àquela altura já conhecido coronel Erasmo Dias, que tinha sido secretário de Segurança de São Paulo e se arvorava de integrante da chamada “linha dura”.

Logo no primeiro dia, Erasmo resolveu dar um susto na estudantada. Dispôs todos perfilados numa quadra de basquete do quartel, cercados pelos quatro cantos por soldados que, deitados no chão, pilotavam metralhadoras ponto 30, e pronunciou um tonitruante discurso, encerrado com a ameaça: “Não estou para brincadeira. Quem tentar fugir ou desrespeitar alguma ordem vai morrer”, disse apontando as metralhadoras.

Em seguida, emendou com a voz empostada, como fazem alguns militares quando querem demostrar autoridade: “Alguma dúvida”?

Eis que Luís Travassos, presidente da UNE, levanta um dedo e pergunta, candidamente: “Coronel, onde é que se mija aqui?” Depois de um instante de perplexidade, com uma ponta de dúvida sobre se deveria levar a pergunta a sério ou se estava sendo sacaneado, Erasmo ordena, sempre com uma firme voz de comando: “Cabo, leve o estudante para urinar!”

Foi uma espécie de anticlímax. 


Tiro n’água

Eu me lembrei desta historinha, diante da situação criada pelas ameaças dos comandantes militares à CPI da Pandemia nos últimos dias. A nota que redigiram, ameaçando mundos e fundos, foi um tiro n’água. Não surtiu o menor efeito. Ao contrário, despertou manifestações de apoio à CPI e a seu presidente, o senador Omar Aziz. 

O que poderiam fazer os chefes militares, depois de pagarem aquele mico – para usar uma expressão a gosto dos jovens de hoje? Proibir que generais e coronéis fossem investigados? Prender alguns senadores? Mandar acabar a CPI? Qualquer das alternativas significaria um atropelo brutal às instituições.

A nota caiu no vazio e não teve qualquer efeito

Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro padecia, há vários dias, de uma insistente crise de soluços. Alguns identificaram a origem do problema como de fundo nervoso. Afinal, há algumas semanas o capitão só recebia notícias ruins. 

Como desgraça pouca é bobagem, adveio-lhe outro problema: uma obstrução intestinal que fez com que os médicos recomendassem a sua transferência para um hospital em São Paulo. 

Logo depois constatou-se, porém, que não seria preciso uma cirurgia – o que chegou a ser aventado no primeiro momento. Melhor assim. Não há por que se desejar o mal a alguém – mesmo que esse alguém seja um adversário político.

Já quanto aos soluços, não se sabe se continuaram, nem se sua origem era mesmo de fundo nervoso. Porém, as más notícias não dão uma trégua ao presidente. Mesmo com a suspensão dos trabalhos da CPI da Pandemia por 15 dias, devido ao recesso do Senado, as perspectivas não são boas para ele. Os senadores já informaram que aproveitarão a parada para cruzar informações e investigar novas denúncias.

Tudo indica que no Ministério da Saúde estão batendo cabeça duas quadrilhas - uma formada por parlamentares ligados ao Centrão; outra operada por militares. E para a sustentação do governo Bolsonaro, tanto o Centrão, como os militares são importantes. Como o presidente poderia arbitrar a disputa sem criar enormes problemas? É, de fato, uma senhora dor de cabeça.

A disputa pelo controle de “negócios” é feroz e as informações começam a vazar. Foi lama no ventilador. (Atenção: ao admitir a hipótese de militares envolvidos em corrupção, não me refiro aqui às Forças Armadas em seu conjunto, mas a integrantes dela que, supostamente, teriam se envolvido em procedimentos, digamos, não republicanos.)


Fundo nervoso?

De qualquer forma, se a suspensão temporária dos depoimentos na CPI pode trazer um refresco imediato ao presidente, isso talvez seja fugaz. Pode até dar um alívio para os soluços de Bolsonaro – caso eles sejam mesmo de fundo nervoso. Mas, por quanto tempo? E depois?

A tentativa de enfrentar com ameaças as denúncias de corrupção envolvendo militares em cargos civis não resolve. A nota dos chefes militares mostrou isso. A rigor, só resolveria se vivêssemos numa ditadura aberta, o que (pelo menos ainda) não acontece, apesar dos desejos do presidente. E fica a dúvida: prevalecendo a situação atual, até quando os militares no governo poderão ser blindados? Assim, é forçoso reconhecer que, se forem mesmo de fundo nervoso, os soluços de Bolsonaro poderão voltar diante de novas contrariedades. 

A situação me fez lembrar uma música gravada por Jackson do Pandeiro. Num ritmo contagiante, ela conta a história de um tal Cabo Tenório.

O cabo era useiro e vezeiro em se meter em confusão. Quando isso acontecia, distribuía bordoadas a rodo. Só se acalmava quando todos reconheciam que ele era mesmo o maioral e cantavam uma música com o estribilho: “Cabo Tenório é o maior inspetor de quarteirão”. Aí tudo se acalmava e voltava às boas.

Pois bem, não parece que no momento haja muita gente por aí reconhecendo Bolsonaro como o maioral – nem no papel de presidente, nem mesmo no de inspetor de quarteirão. Muito menos parece haver a gente disposta a cantar isso em prosa e verso. Assim, dificilmente Bolsonaro receberá uma homenagem como a que acalmava o Cabo Tenório. 

Por isso, caso seu soluço seja de fundo nervoso, o problema pode não passar tão cedo. Talvez, até se agrave.

E crise de soluço é uma coisa muito chata mesmo.

Fé na Arte


 Ilustração Mani Ceiba

Por Mani Ceiba

“Se aceitarmos o significado de arte em função de atividades tais como

a edificação de templos e casas,

realização de pinturas e esculturas, ou tessitura de padrões,

nenhum povo existe no mundo sem arte.” (GOMBRICH, 1999, p.19).


Encantada por mitologias e estudos de civilizações, sempre levei isso para minha arte, inclusive por não ser nem ter uma criação cristã.  Para mim, as formas artísticas onde a arte se manifesta através do cotidiano dos povos são todas da mesma importância e beleza. Tenho um apreço maior pela arte dos grafismos e arte indígena, talvez por esta descendência ser forte na minha memória emocional. 

Minha compreensão e forma de viver da arte não está separada de quem eu sou. A arte faz parte de mim e não a desvinculo apenas como um trabalho remunerado. Muitas vezes essa forma de arte é rejeitada no mundo mercadológico a que estamos acostumados, a arte como maneira de ser. 


Uma arte que não é produto de mercado e sim expressão de uma atitude para com a vida, de uma forma de se portar diante da existência, atestando a sacralidade de tudo que envolve o viver (PASTRO, 2010).


A arte dos povos indígenas é isso. Na arte indígena, através da pintura corporal, etnias diversas exprimem as fases da vida de um membro (luto, doença, resguardo, rituais de transição) ou situações comunitárias como guerras, rituais religiosos. Ela é marcadora dos ritmos e tempos da vida (VIDAL, 1978). Não é arte para ser vendida ou apenas para ser bela, nem para simples deleite de quem observa ou valorização de quem a ostenta. Uma indígena que pintou o corpo de outra não assina seu nome na obra, pois a arte não é algo descolado da vida e sim, antes de tudo, é sua expressão e seus tempos demarcados pelos elementos pintados e materiais utilizados. Os colares e cestaria são belos porque a natureza é bela e a arte já está inserida nela. 

A origem para a palavra “religião” vem do latim, que significa respeito pelo sagrado. Outra etimologia que é discutida é da palavra RELIGARE, também do latim, que significa atar. Definição para arte não é tão simples mas pode-se dizer que é algo que se comunica, transcendendo a linguagem de palavras.

Desde o princípio da história da humanidade, arte e a religião estão ligadas. Nas pinturas rupestres, na suntuosidade da arte egípcia, minimalismo da arte budista, nas catedrais góticas, na busca pela luz dos iluministas. No simbolismo do próprio divino na arte muçulmana e seus arabescos geométricos perfeitos como símbolos abstratos. Nas formas de demonstração da consciência e de comunicação do que está ao redor e dentro de si mesmo, a arte faz a comunicação direta entre emissor e receptor mesmo quando sendo representativa. 

Sendo assim a própria arte não pode ser, para o artista, a sua religião? Respeito pelo aquilo que é sagrado pra si, independente de crença, nome dado para Deus ou prática e te ata a algo que é além da compreensão da lógica e racionalidade. 

Algumas filosofias orientais dizem que Deus está onde está seu coração. Se meu coração está na arte e ela me religa aquilo que tenho de mais verdadeiro e profundo, então posso não chamar de Deus ou Deusa e sim de Arte apenas, aquilo que me transforma e transmuta. Algumas antigas escolas de ocultismo e magia chamam seus estudos de a grande Arte, obras com o objetivo de descobrir a fonte da vida, ser íntegro, concentração, descobertas dos mistérios que poderiam ser os alicerces sobre os quais repousa a felicidade do homem. 

A Grande Arte?! Nossa vida pode ser uma grande Arte! 


terça-feira, 6 de julho de 2021

A ARTE LIBERTA O ESPÍRITO


Ilustração Mani ceiba

Por Mani Ceiba

Na relação arte e vida eu vejo uma dança de enlaces, onde não se pode claramente limitar onde é arte e onde é vida. Quando alguém diz: “Não entendo nada de arte”, eu sempre penso  realmente se confundi muito gostos e referências acadêmicas com o que é arte. Quando alguém diz que não sabe fazer arte, imediatamente eu me lembro de um pensamento de Nietzsche em O nascimento da tragédia onde ele diz:  "Só como fenômeno estético, a existência e o mundo aparecem eternamente justificados". (GT/NT, Ensaio de autocrítica 5, KSA 1.17). Nietzsche defende que o sonho e a embriaguez são condições necessárias para que a arte se produza; por isso, o artista, sem entrar em um desses estados, não pode criar. 

Eu entendo aqui a embriaguez não só alcançada através de meios externos, mas a embriaguez de estados que experimentamos através da dor, de uma situação de felicidade extrema, numa paixão violenta ou qualquer estado emocional que nos deixe entorpecidos, paralisados ou totalmente sem controle.

E como sonho... Se você sonha, dormindo ou acordado, se você é capaz de produzir imagens na sua mente, você possui a força da arte dentro de você e pode entender o poder de libertação que a arte possui, utiliza, faz morada e ainda dá a passagem.

Quando está cansado ou triste e uma música te apoia ou te reanima. Quando chora com um filme ou dança enlouquecidamente dentro do seu quarto, permite que algumas formas da arte mostrem seu poder.

Não há nada de errado, diz Schopenhauer, em querer desligar-se do mundo por uns breves instantes, para contemplar a vida sem se deixar afetar por todas as suas crueldades. Para poder se divertir e divergir. Buscar a paz. Quando a pessoa se perde no objeto, para além de qualquer objeto, ela se torna uno e isso é o que a arte faz. Ela nos liberta para podermos retornar para nós mesmo unificados

Frida Kahlo para mim representa tudo isso! 

As dores, as alegrias e os sofrimentos vindo de amores, lutas e de escolhas na vida todos temos. Podem ser abismos profundos, podem ser dores inimagináveis. Quem sempre decide ser quem se é de verdade enfrenta o mundo! 

Tudo o que somos está dentro de uma mente e de um corpo, com mão, pés, órgãos... Nascemos encarcerados, por isso choramos. Com o tempo descobrimos que estamos dentro de uma casa móvel. Percebemos que apesar de estarmos presos dentro desse corpo, ainda podemos levar essa casa também. Isso alivia a prisão. Com o tempo nos identificamos com esse lugar, alguns passam a acreditar que são essa casa apenas e cuidam só dela inclusive, mas isso é outro assunto...

Mas Frida foi encarcerada mais uma vez. Seu corpo, sua casa, também estava preso. E a arte mais uma vez mostrou seu poder, através dos olhos, ouvidos e mãos de quem estava pronta para deixar a arte transitar e libertar. Só não é uma possessão porque a arte é tão generosa que ela não controla, ela apenas permite. 

A arte permite. O julgamento vem de quem olha com deturpações e limitações. Arte é uma expressão magnífica do amor. Pela arte Frida grita a sua dor, se mostra inteira, caminha através do tempo e nos faz pensar e sentir. 

Hoje em homenagem ao aniversário de nascimento e às vésperas ao de morte de Frida Kahlo eu me lembrei de uma música antiga que até por questões comerciais de gravadoras não é considerada tão boa. Mas a letra fala do amor pela arte. O amor pela música como uma representação da arte. Reproduzirei uns trechos aqui. A música foi gravada por Andrea Bocceli em 1997:

“Vivo por ela sem saber
Se eu a encontrei ou ela me encontrou
Já não lembro como foi
Mas, no fim ela me conquistou...

Vivo por ela que me dá
Força, valor e realidade
Para me sentir um pouco vivo...

Como dói quando falta (por ela, vivo em um hotel)
Como brilha forte e alta (por ela, vivo na própria pele)
Se ela canta em minha garganta
Minhas mágoas mais escuras se espantam

Vivo por ela e ninguém mais
Pode viver dentro de mim
Ela me dá a vida, eu a vivo”

Que todos os artistas que se libertam através da arte sirvam de inspiração para todas as faltas de amor no mundo.



 

Quero encarar Hilda Hist

  Renata de Souza*   Há pouco tempo fui interrogada sobre o sentido da escrita em minha vida. - "Por que você escreve?" Inicia...