sexta-feira, 14 de maio de 2021

BLUES

 Por Leandro Souto Maior



“Os jovens ingleses conseguem aprender a tocar guitarra do seu jeito, mas conseguem aprender a cantar como você?” 

“Você diz jovens brancos? Oh não, você sabe disso melhor do que eu... Eles não têm a alma, nunca passaram por tempos difíceis.” 

O diálogo acima foi protagonizado pelo cantor, compositor e guitarrista norte-americano Muddy Waters, um grande bluesman (músico de blues) cuja poderosa influência na música é sentida até hoje. 

A palavra “blues”, antes de servir para denominar um gênero musical, era usada para definir um estado de espírito, com o sentido de tristeza. E esse novo gênero musical surgido nos Estados Unidos, no início do século XX, era uma expressão das vidas do povo negro levado para lá como escravo, que morava e trabalhava nas plantações. Era a música cantada em trabalhos coletivos, como colheita de algodão ou obras em ferrovias. Então, apesar de ter surgido nos Estados Unidos, o blues foi criado por esses africanos, vindos de regiões onde atualmente são países como Senegal, Gana ou Congo, por exemplo. 

Os “jovens brancos” aos quais Muddy Waters se refere seriam artistas como Eric Clapton e os Rolling Stones. Pois foi o interesse pelo blues negro na Inglaterra branca que estabeleceu as bases da revolução do rock nos anos 1960. Quando Muddy Waters tocou guitarra elétrica na Inglaterra em 1958, os músicos mais novos logo foram atraídos pelo instrumento eletrificado. Daí em diante, grupos de blues começaram pipocar por lá, como o Cream, com Eric Clapton, e os Rolling Stones, com Mick Jagger, cantando num estilo dos vocalistas negros norte-americanos. Para Muddy Waters, porém, eles seriam incapazes de conseguir a intensidade emocional do blues original negro, a autenticidade daqueles descendentes de africanos com quem a verdade musical americana começou, um canto de liberdade na senzala da casa grande. 

O mais legendário bluesman, Robert Johnson, define em seu clássico “Walking blues”: “Alguns lhe dirão que este blues atormentado é tão terrível/Mas é o pior sentimento que um homem pode jamais experimentar”. 

E em cada fazenda surgiam músicos, cantores e tocadores de violão. Alguns seguiram em frente e se tornaram lendas. Felizmente, muitos desses músicos pioneiros foram descobertos por olheiros de gravadoras, e a maioria desses discos raros de 78 rotações foi relançada ao longo do tempo por colecionadores em pequenos selos, Assim, para nossa sorte, ainda é possível apreciar hoje essa notável música  de nomes como Buddy Guy, B. B. King, Albert King, Freddie King, John Lee Hooker, Howling Wolf, T. Bone Walker, Bukka White, Lightnin’ Hopkins, Big Bill Broonzy, Leadbelly, Charley Patton, além dos já citados Muddy Waters e Robert Johnson.


domingo, 9 de maio de 2021

XVII de Novembro

 Descubro pela TV, acompanhando o noticiário esportivo, que nesta semana o Vasco jogou por alguns minutos com doze jogadores contra o Tombense, pela Copa do Brasil. Marquinhos Gabriel, substituido pelo técnico Marcelo Cabo, simplesmente ficou em campo depois que o substituto entrara. Até que resolveu sair, sendo premiado  com um cartão amarelo pelo árbitro da partida. 

O lance pitoresco aconteceu no simpático estádio de Tombos, o pequenino município mineiro que pela proximidade do território fluminense – e pela legião de cruzmaltinos apinhados em uma casa em construção, muito justamente dispersada pela nem sempre justa polícia mineira – parece guardar muito mais relação, ao menos cultural e esportiva, com o Rio que com Belo Horizonte. 

Não vi o jogo. Por mais que ele pudesse chamar a minha atenção. Estádio a moda antiga, raiz como gostam de dizer nos dias de hoje, bem diferentes das arenas globalizadas que pululam mundo afora. Tu olha o estádio e mesmo sem ter ido uma só vez a Tombos, mesmo sem ser um observador costumeiro do futebol mineiro, aposta: é o campo da Tombense.

Mas a menção ao time com doze em campo me levou a uma outra época, bem mais perto de casa. Estádio Paulo Fernandes, Barra do Piraí. Campo do Royal Sport Club, o Tricolor da Colina. Anos 1960. Como eu só nasceria quase uma década depois, o relato me foi passado por papai. Seo Zé Carlos nasceu em Barra e sempre se dividiu entre a cidade natal e a vizinha Vassouras. O que o transformou em uma espécie de Roberto Leal. Para muitos em Vassouras, ele era de Barra. Para tantos barrenses, de Vassouras.

Vale um parênteses. Nos anos 1960, o futebol seguia amador no estado do Rio de Janeiro, que ainda não se fundira com a Guanabara. Só times de Niterói, o mais famoso de todos o Canto do Rio, se aventuravam a enfrentar os clubes tradicionais do antigo DF. Aqui pelo antigo estado do Rio algumas cidades se destacavam. Três Rios de América e Entrerriense. Campos de Americano e Goytacaz. O Leão do Sul era o orgulho de Barra Mansa. Em Volta Redonda, o Guarani (seria do Rústico?) era o mais falado – o Volta Redonda FC  seria criado pela vontade do regime, em 1976, para distrair o operariado da Cidade do Aço. O Resende já existia – mas não lembro de papai falando do Gigante do Vale.

Em Vassouras, o agora quase centenário Fluminense dividia atenções com o Vassourense, de camisas azuis e brancas muito parecidas com a do São José, o Zequinha de Porto Alegre, e o XV de Novembro, o clube verde e amarelo criado na suburbana Residência pelos funcionários do Departamento de Estradas de Rodagem do Rio de Janeiro, que instalara ali a sua Segunda Residência, que daria nome a um dos bairros mais populosos da Cidade Histórica. Talvez vassourenses mais antigos fiquem chateados, mas nenhum dos três ombreava com os vizinhos já citados.

Royal Sport Club

Royal e Central eram gigantes. Royal, como o nome sugere, nascera da burguesia barrense e de torcedores aficcionados pelo Fluminense. Não por acaso sua camisa é idêntica a do clube de Álvaro Chaves. Já o Central, os mais velhos já ligaram os pontos, surge como extensão das casas dos ferroviários da antiga estrada de ferro Central do Brasil. Virei gente em uma Barra do Piraí que ainda se dividia entre seus clubes tradicionais. Garoto, escolhi o Royal por conta do amor já declarado ao Tricolor carioca. Papai, que não lera Marx mas sempre vivera de salário, fosse em farmácias, na Companhia Industrial de Papel Pirahy ou como vendedor de produtos farmacêuticos, optara pelo Central. Mas não movera uma palha para tirar o meu encanto pelo tricolor. O de Barra. Porque o do Rio ele amava desde Castilho, Píndaro e Pinheiro...

Então aquele Paulo Fernandes da memória de papai sempre me foi muito próximo. Talvez minha primeira vez no estádio tenha sido com mamãe, em um festival do sorvete que uma foto do início dos anos 1970 não me deixa esquecer – ela linda, nova, com calça boca de sino. E eu feliz demais em meio a tanta guloseima. A primeira vez que vi o Flu de perto foi ali também, quando o Tricolor ensaiava montar o esquadrão tricampeão carioca e campeão brasileiro dos anos 1980. Ainda não havia Assis, Washington e Romerito, mas lembro bem o barulho de um chute de Duílio na trave do gol à direita das cabines de rádio. Vi também o estádio tomado, com as torcidas separadas pela PM, em decisões do campeonato barrense. Em campo, craques como Vermuth e Mão Branca.

Mais tarde voltei ao estádio pela Rádio Barra do Piraí para cobrir partidas de um campeonato esvaziado, com times de bairro que nem em seus melhores momentos poderiam fazer a gente pensar em um Royal e Central. 

Mas o que isso tem a ver com o Tombense e Vasco desta Copa do Brasil? Papai me contou que certo dia soube que o Royal preparava uma partida para reinaugurar a iluminação do estádio da Colina. O jogo, claro, aconteceria à noite, em um dia de semana. O adversário seria o brioso Esporte Clube XV de Novembro com suas camisas amarelas. O Velho, um garoto à época (dia desses eu descobri que o Velho na verdade nunca fora velho, mas isso é uma outra estória), foi ao Paulo Fernandes com os amigos roialinos. E o Royal, que empatara em amistosos com times da Guanabara e até servira de sparring para a seleção brasileira em preparação para a Copa de 1966, resolveu não tomar conhecimento do visitante da cidade vizinha.

E desandou a marcar gols. Fez um, dois, três, oito. Nove, doze... Lá pelas tantas o técnico vassourense resolveu mexer. Um reserva entrou. O titular  não quis sair. O árbitro não se importou. Os adversários também não. E o massacre seguiu: treze, catorze, quinze. Dezessete. Não sei se a zero ou a coisa parecida. E o pai, centralino para uns, vassourense para outros, teve de aturar a galhofa tricolor. “Zezeca, o time agora mudou de nome. XVII de Novembro”. 

Central Sport Club


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*Texto originalmente produzido em 8/4/2021

**João Henrique Barbosa é jornalista, historiador, filho de José Carlos Barbosa e ouvinte atento de seus causos. Os fatos podem não ter acontecido exatamente assim. Seriam frutos da memória do Velho ou das lembranças desse pobre escriba já às portas do cinquentenário. Uma homenagem à memória de Central e Royal (e a XV, Vassourense, Fluminense de Vassouras, Entrerriense...) transformados em quase nada em tempos de futebol globalizado.

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