quarta-feira, 16 de junho de 2021

O dia que o vibrador virou um elefante branco na sala

 


Ilustração da nossa convidada especial Carol Cospe Fogo


Por Mani Ceiba

Bom, antes de tudo preciso explicar um pouco como é meu jeitinho de ser e viver para ajudar na visualização dessa história. Eu detesto festas, qualquer uma. Descobri recentemente que até as virtuais podem ser ruins porque não tem a área externa, varanda ou quintal pra fugir de uma conversa chata. Mas voltando, aniversários, velórios, festa de casamento, natal, tudo pra mim é ruim... Na verdade o que eu não gosto é de aglomeração de pessoas. Quando alguém fala “tá lotado, vem!”. Aí que não vou mesmo. Muita gente, muita informação, sou muito sensível a perfumes e as pessoas adoram perfumes e não combinam de usar todas o mesmo!

Sou nascida em família italiana. Sim, a italiana casou com um indígena, e todos falam alto, gesticulam, final de festa todos bêbados falando mais alto ainda, traumatizei? Pode ser... o fato é que é assim! Outra coisa, sou bem comunicativa no trabalho, com as amigas, vez ou outra nas baladas da vida. Quem não me conhece me acha a desinibida e convencida, mas na verdade sou super tímida e insegura quando estou em uma situação em destaque sem trabalho ou defendendo um ideal. Minhas bochechas queimam e meu corpo todo começa a tremer por dentro quando estou em uma situação que para mim é embaraçosa, parece que os órgãos resolveram dançar rumba!

Agora sim, seguimos com minha narrativa. Uma grande amiga... sabe aquela que a gente conheceu na escola e apesar de todas as diferenças que se apresentaram na vida, a amizade seguiu? Então, a felisberta resolveu se casar, com tudo, igreja, vestido, buffet (detesto tudo) e pior, despedida de solteira... Dias insistindo para eu ir, disse que teria muitas bebidas, na época eu era fã de uma bebida que em São Paulo se chama submarino, é tequila que mergulha no chopp, o negócio é econômico, você bebe um e pronto... Diante desses entretenimentos tão sedutores, topei. Só que na minha cabeça, era uma festinha entre mulheres, bebidas, risadas, no final umas e outras sem roupa dançando, ela abriria os presentes, riríamos e fim. Talvez a influência de filmes e séries norte-americanas também tenham colaborado para isso. 

Recebi uma lista de uns presentes que ela gostaria de ganhar, frigideira de cerâmica, cortina antimofo pro banheiro, conjunto de taças... deveria ter desconfiado aí? Deveria! Mas no final desse convite/lista tinha uma opção assim: “Escolha algo que seja especial para a noiva e que acredite que seja único para ela”. Não tive dúvidas, é nesse que vou! Comprei um vibrador! Lindo, grande, que rodopiava. Escrevi na dedicatória algo como: “Depois que casa, o sexo acaba, então será bem mais útil que a frigideira”. 

Escolhi uma roupa para despedida de solteira, na minha cabeça claro, decote, vestido curto e fui com minha caixinha devidamente embrulhada em um papel roxo brilhante. 

Toco a campainha e a porta se abre, uma moça que nunca vi. Entrei, ela pega da minha mão a caixa e coloca em cima de uma mesa cheia de outros presentes, havia umas 15 mulheres mais ou menos... A desconhecida falando sem parar, me segurando pelo braço e aí aparece minha amiga, meio incomodada e me diz: “Ainda bem que você veio, minha mãe trouxe minhas tias e primas e isso aqui tá bem chato”. Sim! Era basicamente uma reunião de família!! Perguntei sobre as bebidas e isso pelo menos estava liberado. 

Em algum momento, a mãe e as tias que pareciam avós falaram como ia funcionar. Ela ia ficar no centro da sala, em cima de uma mesa abrindo os presentes, tinha que tirar da caixa e mostrar! E tinha que adivinhar de quem e o que era e claro, ler o cartãozinho!! Se errasse tinha um castigo. Sinceramente não dei a mínima pra brincadeira, minha única preocupação: “Como sumir com aquele pacote roxo brilhante”!!

Tentei, mas aquela desconhecida da porta parecia um pitbull guardião dos pacotes. Pensei: “Vou fugir antes”. Também não consegui! A brincadeira começou...: “Hum, essa caixa da tia Paula..., deve ser um faqueiro! Ah que texto lindo tia! Essa caixa da tia Joana, copos”!! Felicitações e sobre como ser uma boa mulher casada... Pegaram a caixa roxa brilhante, pensei em ir no banheiro na hora, mas não deu tempo, lembra do submarino? Tava meio devagar já... Ela abriu e todas viram o vibrador! E num silêncio absurdo onde dava pra ouvir meus órgãos tremendo, ela leu o cartão! E todas olharam pra mim, todas! Até a cachorra deitada no tapetinho e acho que até a samambaia pendurada perto da janela! Ela disse com uma cara meio de felicidade meio de desespero: “Esse presente é seu”! Eu respondi “É”! 

Não sei bem o que houve, parecia que todo mundo decidiu fingir que aquilo não aconteceu e fizeram um acordo telepático e continuaram a brincadeira. Mas aquele órgão imenso e rosa  ficou em cima do jogo de taças no canto da mesa...

Climão, ninguém mais falava comigo, eu querendo ir embora e minha amiga falando: “Fica só mais um pouco, ainda não consegui beber e vamos beber”. Fiquei, já tinha muito mais que tequila e cerveja no meu sangue, acho que já estava no modo – que se dane! Tô eu ali sentadinha sozinha, senta uma das tias do meu lado e fala sussurrando: “Eu tenho um desses, só que pequeno. Achei diferente esse”! Levanta e sai... Depois uma prima: “Vai pilha”? Depois outra prima e outra tia. E isso se repetiu escondido no canto da sala algumas vezes e eu olhando o causador do incomodo em cima da mesinha brilhante e orgulhoso. 

Como gosto de sair sempre de festas sem anunciar, decidi ir Mas antes liguei o vibrador e deixei ele rodopiando e saí.

Quero usar esse fato para falar sobre por quanto tempo ainda vamos esconder nossa sexualidade. Inclusive em um ambiente só com mulheres! 

Convenhamos, imagina uma festinha só de homens, alguém aparece com um brinquedo sexual. A reação seria a mesma? Por que homens podem assumir que se divertem com sexo e mulheres não?

Por que ainda sentimos vergonha de algo que fazemos, que sentimos, que queremos? Se não fazemos, podemos ter curiosidade e isso remete só ao nosso corpo e nossas escolhas.

Esse evento aconteceu há alguns anos. Aí podemos pensar que agora não é mais assim, né? Dois anos atrás, uma amiga ia fazer uma cirurgia e me disse: “Antes preciso te contar onde guardo meu vibrador, se acontecer algo comigo, promete que você pega antes de algum parente ver”? Não, não mudou! E a cirurgia era no olho, sem anestesia geral. 

Um dia fiz um post na rede social de um estudo que a mulher tem mais áreas de prazer que o homem. Era muito bem explicado. O post teve dois comentários de amigas e todos os outros, uns 10, eram de homens. Uns inclusive claramente duvidando do artigo científico. Mas mulheres não se sentiram confortáveis para falar sobre um poder delas mesmas.  Segundo o artigo, mulher praticamente foi feita para sentir prazer sexual. Por que existe tantas mulheres que nunca tiveram um orgasmo? E por que falar disso é tão evitado?

Alguns anos depois minha amiga mandou uma foto...: “Ainda tenho seu presente. A frigideira não tenho mais”.


Eu tô cansada

 

Ilustração Mani Ceiba

Por Stephany Brito

Venho relutando pra falar disso. De todas as opressões que sinto, essa é a que me sinto mais sozinha. Porque contra o racismo não tem porém, contra o machismo não tem porém, contra o fascismo não tem porém, mas contra a gordofobia sempre surge um. 

“Mas você tem que cuidar da sua saúde”. “Mas gordura em excesso é prejudicial”. “Mas eu só quero o seu bem”. 

Já ouvi isso de pessoas que fumam “que nem uma caipora”; de pessoas que não cuidam do Diabetes; de pessoas que se dizem desconstruídas, mas insistem em falar que “obesidade é doença, você tem que se cuidar”. 

Não nego a propensão a doenças, mas olhar uma pessoa gorda como uma pessoa doente é no mínimo perverso e explicarei por quê:

Quando se encara uma pessoa acima do peso como uma pessoa doente, você coloca nela o peso do estigma. 

Sabe por que a gente não faz atividade física? 

Porque nos é negado esse direito.  Porque nas lojas não tem roupas do nosso tamanho. Porque na academia é inevitável perceber os olhares de julgamento. 

Sabe por que grande parte das pessoas gordas é solitária? 

Porque nossos corpos não são vistos como sensuais. Porque quando a gente encontra as pessoas que em sua maioria a gente conhece pela internet elas usam e vão embora sem ao menos explicar o porquê, mas a gente sabe! No fundo a gente sempre sabe. 

Nós sempre somos vistos como os amigos da galera, e se ousamos, por ventura, sentir prazer, temos nossos sentimentos banalizados. 

Não é só o direito de nos exercitar ou o de ser amada que nos tiram, também é usurpado de nós o direito de ir e vir, o direito de ter um atendimento hospitalar e laboratorial digno com equipamentos que atendam às especificidades dos nossos corpos e médicos que não justifiquem dores de cabeça ou corte no dedo com a frase “você precisa emagrecer”. 

Eu tô cansada de morrer. Eu tô cansada de me sentir inadequada. Eu tô cansada de gente que na minha frente me apoia, mas que “passa pano” pros meus assassinos por trás. Eu tô cansada dos olhares de reprovação e de ter 20 primeiros encontros por ano porque ninguém quer uma segunda vez. Eu tô cansada de chegar a lugares onde as pessoas deduzem que só me alimento de pizza e hambúrguer sendo que tenho uma alimentação saudável. Eu tô cansada de ter minha capacidade negada e meu valor profissional diminuído por que acham que gorda não é capaz de dar uma aula decente. Eu tô cansada de ouvir que as pessoas se preocupam com a minha saúde, mas eu ter que lutar sozinha pra pagar meu plano, pra comprar meus legumes e verduras, pra brigar pelo direito de fazer um preventivo sem sair com um encaminhamento de bariátrica. 

Eu tô cansada de ver amigas gordas maiores chorando de solidão. Eu tô cansada de chorar de solidão. 

Eu morro todo dia e você que tem atitudes gordofóbicas é quem me mata. Todo dia eu morro sozinha e lentamente. E eu tô cansada de morrer! 


Nota de rodapé: gorda maior são pessoas que vestem acima do manequim 58 e que na sociedade não são “passáveis” por não terem um padrão de corpo considerado “bonito, tipo violão”. Essas pessoas, além de terem acesso à moda negado também, tem negados os direitos a acessibilidade, a atendimento médico digno, a emprego, a locomoção decente e etc. 

A sociedade limita até aonde você pode ser gorda e depois disso você é automaticamente tachada como doente.


Januário de Oliveira: a voz de inesquecíveis noites de domingo

 

Ilustração Cacinho

Por João Henrique Barbosa**


Cheguei a Vassouras, de mudança com papai e mamãe, em uma tarde de domingo de 1987 –  23 de agosto, para ser mais preciso. A primeira coisa que fiz na Cidade Histórica foi ligar a Telefunken preto e branco em um canto da casa, improvisar uma antena para fazer funcionar a TV Educativa e acompanhar a final do basquete do Pan de Indianápolis. Oscar e Marcel enfileiravam bolas de três e batemos os Estados Unidos em um jogo inesquecível. 


Na narração, um Januário de Oliveira, bem mais afeito ao futebol, emprestava o seu talento a uma vitória épica daquele que até poucos anos atrás era o segundo esporte do brasileiro. Mais tarde, nos anos 1990, ele se tornaria a voz do futebol carioca na TV, graças às transmissões do Campeonato Estadual na Band. 


Gaúcho do Alegrete como João Saldanha, Januário de Oliveira eu conheci ainda bem menino. Era ele o responsável pelas reprises exibidas na TV Educativa “canal 2, Rio de Janeiro” (como ele frisava nas transmissões) no fim das noites de domingo, em um tempo em que futebol na TV era um luxo. Explico aos mais novos: futebol, salvo partidas decisivas dos campeonatos mais importantes, se acompanhava pelo rádio. Domingo, 17 horas acontecia o principal jogo da rodada. Todo mundo se aboletava em volta do rádio. Fosse uma vitrola na sala ou aparelho menor, no quarto, quando a importância do jogo se resumia aos mais apaixonados. Em tardes de muito calor, os bairros populares viam suas ruas cheias de torcedores apaixonados e seus radinhos de pilha, alguns nem tão “radinhos” assim. 


No Rio daquele tempo, não faltavam craques nas transmissões esportivas pelo rádio: Waldir Amaral e Jorge Curi, na Globo; Doalcei Camargo, na Tupi. Lá em casa, ouvíamos José Carlos Araújo, na Nacional, com Luiz Mendes e Washington Rodrigues nos comentários. Januário de Oliveira narrava jogos menores na mítica Rádio Nacional. Na TVE, no entanto, os clássicos eram dele. E, naqueles anos 1980, o Campeonato Carioca era organizado de um jeito que todo domingo era dia de clássico. Dia de jogão. Claro que, para isso, Bangu e América contavam como times grandes e, tecnicamente, geralmente faziam jus à deferência. 


Domingo tudo parava para ouvir as informações que vinham no Maracanã. Terminado o jogo, não tinha TV a cabo para transmitir as entrevistas – que não eram coletivas e rolavam mesmo dentro dos vestiários, com jogador tomando banho ou coisa parecida. Se fosse dia de vitória do seu time, o lance era esperar os Gols do Fantástico, na Globo, quando o sono já dava as caras. Ou esperar o Globo Esporte na hora do almoço do dia seguinte. Quem estudava de manhã e morava longe da escola já pensava na logística para chegar em casa a tempo de ver a reportagem. E nada de dar aquela chegadinha no banheiro na hora do programa, para não correr o risco de perder – não havia Youtube ou Globoplay para acompanhar depois... 


Neste contexto, a reprise da TV Educativa “Canal 2 Rio de Janeiro” era biscoito fino. Às dez da noite, a TVE nos brindava com esta maravilha: na íntegra, o jogo que três horas antes terminávamos de acompanhar no radinho. Minha admiração por Januário de Oliveira vem deste tempo. Ao lado do comentarista Achilles Chirol ele era a voz que acompanhava as imagens da nossa paixão. Lá em casa, elas ainda eram em preto e branco. Como não sonhávamos com TV a cabo, nem com a possibilidade de assistir a todos os jogos de nossos times, tínhamos a exata noção da importância daquelas reprises. Conversando com os mais velhos, nos sentíamos privilegiados. Afinal, a geração de papai para ver os gols precisava ir aos cinemas, com um delay de semanas ou até meses, sem ter a certeza de que acompanhariam os gols esperados. 


No bairro onde cresci, as reprises de domingo eram uma instituição. Um senhor que morava do outro lado da rua dormia sempre após o almoço. Descansava e fazia questão de estar apagado para não saber o que acontecia no Maracanã, nem mesmo pelas manifestações da vizinhança. Às dez da noite, ele sentava em sua cadeira do papai para acompanhar o clássico como se ao vivo fosse. Costumava ser um lazer divino, mas lembro de uma gaiatice que vez por outra estragava o final de domingo. O jogo rolando e alguém gritava, embaixo da janela: “O Bangu vira no final, gol do Rubens Feijão”. Ele costumava responder com um palavrão, sem esconder o desapontamento. 


Quem cresceu apaixonado por futebol e acompanhando Januário só poderia ficar muito feliz com o sucesso midiático dele nos anos 1990. Suas transmissões inesquecíveis, os termos criados e popularizados em tempo de certa entressafra no futebol carioca. Como tricolor, o carinho só aumentou com a tragédia que acometeria Ezio, o Super Ézio, herói solitário de um Flu enfraquecido, um dos personagens prediletos de Januário (Ézio morreu aos 45 anos, vítima de um câncer). Não faz muito tempo me peguei chorando ao ver o velho narrador em uma matéria linda de Eric Faria – com certeza um jornalista da geração que conheceu Januário nos anos 1990 – no Maracanã, seu palco predileto, ao lado de Valdeir “The Flash”, Sávio “o Anjo Louro da Gávea”, William “Pequeno Polegar”, a viúva e o filho de “Super Ézio”. 


Cansado, adoecido, Januário nos deixou no fim de maio. Com ele se foi um pedaço importante da memória afetiva de uma geração de fluminenses apaixonados pelo esporte mais popular do país. Meninos e meninas que tinham as pupilas dilatadas quando Januário de Oliveira sentenciava: “Taí o que você queria, bola rolando no Maracanã”


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  Renata de Souza*   Há pouco tempo fui interrogada sobre o sentido da escrita em minha vida. - "Por que você escreve?" Inicia...