terça-feira, 3 de agosto de 2021

Ao amigo Vicente Melo


Por Clóvis Lima

Fico imaginando o que o Vicente Melo falaria dele mesmo nesse momento, pois não sei se o texto que me atrevo a escrever estaria a sua altura. Vou me arriscar.
Talvez ele fizesse uma piada dele mesmo com aquele humor inquieto e mordaz.
Talvez ele esteja fazendo isso agora mesmo, rindo e confabulando ideias.
Vicente é assim, uma figura inquieta e às vezes indecifrável.

Conheci Vicente quando trabalhava na In Laser, um bureau de impressão na Vila Santa Cecília, ainda no Edifício CBS II, no sétimo andar. Acho que foi em 1992. À primeira vista, ele não impressionava. Chegava e ficava como quem estivesse já ali, como parte do ambiente. Sempre elegante com sua camisa social, falando pouco e se mostrando atento aos detalhes. Mas bastava alguns minutos de convivência para se tornar um grande amigo dele. Elegante não só na vestimenta, elegante também quando dava pitaco em nosso trabalho. Parecia que estava sempre um passo a nossa frente. Vejo Vicente Melo como um apaixonado pelo mundo das ideias, apaixonado pela criatividade, enfim, um apaixonado que também sabia nos apaixonar pelas ideias. Foi na In Laser que também conheci Cristóvão Villela, uma espécie de continuação do Vicente, digo isso pois o Cristóvão conseguia traduzir lampejos de ideias do Vicente Melo para se transformar em charges sofisticadas.

A face mais indecifrável do amigo foi sua vida durante a ditadura. Nunca me revelou muita coisa. O pouco que sei, por respeito a ele vou suprimir desse texto. Se ele não contou, quem sou eu para contar? Mesmo sendo ele mais um dos muitos perseguidos nos anos de chumbo, dificilmente transparecia. Vicente sabia viver o momento presente e sem querer nos ensinou isso. Ele sabia se levantar. Teve na década de 90 que conviver com a perda se seu filho Rafael, um grande cara que tive o prazer de conhecer, alegre como o pai. Vicente perdeu seu filho mais velho e acabou nos adotando a todos.


Engraçado como tudo parecia mais leve quando eu o encontrava na Vila, na padaria ou nos eventos culturais. Ainda me lembro quando em 2016, após o golpe na Dilma, ainda apreensivo e sem chão, encontrei-o na padaria no Aterrado e trocamos algumas ideias sobre o que havia acontecido. A serenidade dele era de quem já havia testemunhado parte da história do Brasil e por isso deixava escapar dos olhos uma esperança. Já lá em 2016 ele me disse com todas as letras que aquele era só o começo, que Lula seria preso e que a tendência era, por hora, a coisa piorar. É bom grifar o “por hora” nesse texto pois ali estava sua esperança de que o mal fosse passar. Vai passar, sim, Vicente. Muita coisa passa. Nossa amizade não.


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