terça-feira, 3 de agosto de 2021

O Barão sempre atual

  

Ilustração Cacinho 

Por Cid Benjamin*

As Forças Armadas estão preocupadas com a deterioração de sua imagem, devido à identificação com o governo Bolsonaro. O desconforto se deveria especialmente devido a charges e piadas, relacionando-as com corrupção. 

Pesquisa recente da Datafolha mostra que 54% das pessoas são contrárias à ocupação de cargos civis por militares. Certamente as trapalhadas do general Eduardo Pazuello na Saúde e a bandalheira na compra de vacinas, que vieram à tona na CPI da Pandemia, contribuíram para tal.

Vantagens materiais de todo tipo - além de identidades no plano ideológico – levaram os militares a mergulharem de cabeça no governo Bolsonaro. Só que isso os deixou na mira das gozações. 

“Entre sem bater”

O Brasil tem tradição de humor na crítica política. Ela vem do Império, quando dom Pedro II era um alvo habitual. Nossa maior figura nesse campo foi Apparício Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé. Seu pseudônimo já era um deboche. Na Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas ao poder, era esperado um tremendo confronto em Itararé – na divisa entre o Paraná e São Paulo. Mas entrou na história como o conflito em que não foi disparado um só tiro. Torelly apresentou-se, então, ao país como o herói da batalha que não ocorreu.

Certa vez seu jornal, “A Manha”, foi invadido por oficiais da Marinha que o espancaram, em represália à publicação de fascículos sobre a Revolta da Chibata. O Barão não se deixou intimidar. Afixou na porta da redação o cartaz: “Entre sem bater”.

Acusado de ligações com o Partido Comunista, Torelly foi preso na ditadura do Estado Novo. Ao chegar ao cárcere da Ilha Grande, recebeu um questionário que deveria preencher. Como seria de se esperar, as perguntas eram idiotas. Uma delas: “Tem vícios secretos?” O Barão não perdoou: “São secretos”, respondeu.

Ele logo se tornou uma figura popular. Em 1947, candidato a vereador no Rio de Janeiro, foi eleito. Seu lema era “Mais água e mais leite. Mas menos água no leite”.

Febeapá 

Na ditadura militar, nossa tradição de humor político se manteve. Sérgio Porto, que assinava coluna na “Última Hora” com o nome de Stanislaw Ponte Preta, foi uma pedra no sapato dos donos do poder. Criou o Febeapá – “o festival de besteiras que assola o país” – para comentar as asneiras diárias. 

Pouco depois foi criado por um grupo de humoristas o semanário “Pasquim”, herdeiro do Barão e de Stanislaw. Submetido à censura de forma intermitente, criou um aviso, publicado na primeira página: “Se este selo estiver aqui, o Pasquim não está sendo censurado”. Quando voltava a censura, o selo desaparecia, claro.

Agora, as estultices do presidente genocida e seus amigos fardados e milicianos fizeram o humor político reaparecer em grande estilo. E com um elemento adicional: a internet e as redes sociais, antes inexistentes, lhe oferecem novos espaços de divulgação.

Para Bolsonaro, reagir à gozação com violência implicaria caminhar para a ditadura. Embora esta seja o regime dos sonhos do capitão, no momento não há condições para implantá-la. O que ele faz, então, é vez por outra processar um humorista. Mas é pior: só aumenta o ridículo. 

Assim, mesmo que o Exército esteja preocupado com o desgaste, não há saída enquanto continuar no colo de Bolsonaro, pois o capitão não vai mudar. Afinal, como dizia o Barão de Itararé, “de onde menos se espera é que não sai nada mesmo”.

*Jornalista

**Artigo também publicado na Revista Fórum


Ao amigo Vicente Melo


Por Clóvis Lima

Fico imaginando o que o Vicente Melo falaria dele mesmo nesse momento, pois não sei se o texto que me atrevo a escrever estaria a sua altura. Vou me arriscar.
Talvez ele fizesse uma piada dele mesmo com aquele humor inquieto e mordaz.
Talvez ele esteja fazendo isso agora mesmo, rindo e confabulando ideias.
Vicente é assim, uma figura inquieta e às vezes indecifrável.

Conheci Vicente quando trabalhava na In Laser, um bureau de impressão na Vila Santa Cecília, ainda no Edifício CBS II, no sétimo andar. Acho que foi em 1992. À primeira vista, ele não impressionava. Chegava e ficava como quem estivesse já ali, como parte do ambiente. Sempre elegante com sua camisa social, falando pouco e se mostrando atento aos detalhes. Mas bastava alguns minutos de convivência para se tornar um grande amigo dele. Elegante não só na vestimenta, elegante também quando dava pitaco em nosso trabalho. Parecia que estava sempre um passo a nossa frente. Vejo Vicente Melo como um apaixonado pelo mundo das ideias, apaixonado pela criatividade, enfim, um apaixonado que também sabia nos apaixonar pelas ideias. Foi na In Laser que também conheci Cristóvão Villela, uma espécie de continuação do Vicente, digo isso pois o Cristóvão conseguia traduzir lampejos de ideias do Vicente Melo para se transformar em charges sofisticadas.

A face mais indecifrável do amigo foi sua vida durante a ditadura. Nunca me revelou muita coisa. O pouco que sei, por respeito a ele vou suprimir desse texto. Se ele não contou, quem sou eu para contar? Mesmo sendo ele mais um dos muitos perseguidos nos anos de chumbo, dificilmente transparecia. Vicente sabia viver o momento presente e sem querer nos ensinou isso. Ele sabia se levantar. Teve na década de 90 que conviver com a perda se seu filho Rafael, um grande cara que tive o prazer de conhecer, alegre como o pai. Vicente perdeu seu filho mais velho e acabou nos adotando a todos.


Engraçado como tudo parecia mais leve quando eu o encontrava na Vila, na padaria ou nos eventos culturais. Ainda me lembro quando em 2016, após o golpe na Dilma, ainda apreensivo e sem chão, encontrei-o na padaria no Aterrado e trocamos algumas ideias sobre o que havia acontecido. A serenidade dele era de quem já havia testemunhado parte da história do Brasil e por isso deixava escapar dos olhos uma esperança. Já lá em 2016 ele me disse com todas as letras que aquele era só o começo, que Lula seria preso e que a tendência era, por hora, a coisa piorar. É bom grifar o “por hora” nesse texto pois ali estava sua esperança de que o mal fosse passar. Vai passar, sim, Vicente. Muita coisa passa. Nossa amizade não.


Os soluços, o intestino preso e o Cabo Tenório

Ilustração Clovis Lima

Por Cid Benjamin

Em outubro de 1968, em plena ditadura militar, um congresso da União Nacional de Estudantes (UNE) foi localizado pela polícia em Ibiúna, São Paulo, e quase mil estudantes presentes acabaram presos. 

O episódio foi antes do AI-5, que só aconteceria em dezembro do mesmo ano, e a repressão ainda não era a mesma dos anos de chumbo. Não havia condições políticas para manter aquela multidão de estudantes presos. Afinal, a acusação era apenas de participar de uma reunião. Depois de um ou dois dias no xadrez, foram todos enviados para os estados de origem e, pouco depois, libertados. Apenas cerca de dez ou onze, identificados como os líderes mais importantes, foram separados dos demais e ficaram mais tempo na cadeia. 

O grupo com os supostos líderes foi transferido inicialmente para um quartel do Exército em Santos, no litoral paulista. A unidade militar era comandada pelo àquela altura já conhecido coronel Erasmo Dias, que tinha sido secretário de Segurança de São Paulo e se arvorava de integrante da chamada “linha dura”.

Logo no primeiro dia, Erasmo resolveu dar um susto na estudantada. Dispôs todos perfilados numa quadra de basquete do quartel, cercados pelos quatro cantos por soldados que, deitados no chão, pilotavam metralhadoras ponto 30, e pronunciou um tonitruante discurso, encerrado com a ameaça: “Não estou para brincadeira. Quem tentar fugir ou desrespeitar alguma ordem vai morrer”, disse apontando as metralhadoras.

Em seguida, emendou com a voz empostada, como fazem alguns militares quando querem demostrar autoridade: “Alguma dúvida”?

Eis que Luís Travassos, presidente da UNE, levanta um dedo e pergunta, candidamente: “Coronel, onde é que se mija aqui?” Depois de um instante de perplexidade, com uma ponta de dúvida sobre se deveria levar a pergunta a sério ou se estava sendo sacaneado, Erasmo ordena, sempre com uma firme voz de comando: “Cabo, leve o estudante para urinar!”

Foi uma espécie de anticlímax. 


Tiro n’água

Eu me lembrei desta historinha, diante da situação criada pelas ameaças dos comandantes militares à CPI da Pandemia nos últimos dias. A nota que redigiram, ameaçando mundos e fundos, foi um tiro n’água. Não surtiu o menor efeito. Ao contrário, despertou manifestações de apoio à CPI e a seu presidente, o senador Omar Aziz. 

O que poderiam fazer os chefes militares, depois de pagarem aquele mico – para usar uma expressão a gosto dos jovens de hoje? Proibir que generais e coronéis fossem investigados? Prender alguns senadores? Mandar acabar a CPI? Qualquer das alternativas significaria um atropelo brutal às instituições.

A nota caiu no vazio e não teve qualquer efeito

Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro padecia, há vários dias, de uma insistente crise de soluços. Alguns identificaram a origem do problema como de fundo nervoso. Afinal, há algumas semanas o capitão só recebia notícias ruins. 

Como desgraça pouca é bobagem, adveio-lhe outro problema: uma obstrução intestinal que fez com que os médicos recomendassem a sua transferência para um hospital em São Paulo. 

Logo depois constatou-se, porém, que não seria preciso uma cirurgia – o que chegou a ser aventado no primeiro momento. Melhor assim. Não há por que se desejar o mal a alguém – mesmo que esse alguém seja um adversário político.

Já quanto aos soluços, não se sabe se continuaram, nem se sua origem era mesmo de fundo nervoso. Porém, as más notícias não dão uma trégua ao presidente. Mesmo com a suspensão dos trabalhos da CPI da Pandemia por 15 dias, devido ao recesso do Senado, as perspectivas não são boas para ele. Os senadores já informaram que aproveitarão a parada para cruzar informações e investigar novas denúncias.

Tudo indica que no Ministério da Saúde estão batendo cabeça duas quadrilhas - uma formada por parlamentares ligados ao Centrão; outra operada por militares. E para a sustentação do governo Bolsonaro, tanto o Centrão, como os militares são importantes. Como o presidente poderia arbitrar a disputa sem criar enormes problemas? É, de fato, uma senhora dor de cabeça.

A disputa pelo controle de “negócios” é feroz e as informações começam a vazar. Foi lama no ventilador. (Atenção: ao admitir a hipótese de militares envolvidos em corrupção, não me refiro aqui às Forças Armadas em seu conjunto, mas a integrantes dela que, supostamente, teriam se envolvido em procedimentos, digamos, não republicanos.)


Fundo nervoso?

De qualquer forma, se a suspensão temporária dos depoimentos na CPI pode trazer um refresco imediato ao presidente, isso talvez seja fugaz. Pode até dar um alívio para os soluços de Bolsonaro – caso eles sejam mesmo de fundo nervoso. Mas, por quanto tempo? E depois?

A tentativa de enfrentar com ameaças as denúncias de corrupção envolvendo militares em cargos civis não resolve. A nota dos chefes militares mostrou isso. A rigor, só resolveria se vivêssemos numa ditadura aberta, o que (pelo menos ainda) não acontece, apesar dos desejos do presidente. E fica a dúvida: prevalecendo a situação atual, até quando os militares no governo poderão ser blindados? Assim, é forçoso reconhecer que, se forem mesmo de fundo nervoso, os soluços de Bolsonaro poderão voltar diante de novas contrariedades. 

A situação me fez lembrar uma música gravada por Jackson do Pandeiro. Num ritmo contagiante, ela conta a história de um tal Cabo Tenório.

O cabo era useiro e vezeiro em se meter em confusão. Quando isso acontecia, distribuía bordoadas a rodo. Só se acalmava quando todos reconheciam que ele era mesmo o maioral e cantavam uma música com o estribilho: “Cabo Tenório é o maior inspetor de quarteirão”. Aí tudo se acalmava e voltava às boas.

Pois bem, não parece que no momento haja muita gente por aí reconhecendo Bolsonaro como o maioral – nem no papel de presidente, nem mesmo no de inspetor de quarteirão. Muito menos parece haver a gente disposta a cantar isso em prosa e verso. Assim, dificilmente Bolsonaro receberá uma homenagem como a que acalmava o Cabo Tenório. 

Por isso, caso seu soluço seja de fundo nervoso, o problema pode não passar tão cedo. Talvez, até se agrave.

E crise de soluço é uma coisa muito chata mesmo.

Fé na Arte


 Ilustração Mani Ceiba

Por Mani Ceiba

“Se aceitarmos o significado de arte em função de atividades tais como

a edificação de templos e casas,

realização de pinturas e esculturas, ou tessitura de padrões,

nenhum povo existe no mundo sem arte.” (GOMBRICH, 1999, p.19).


Encantada por mitologias e estudos de civilizações, sempre levei isso para minha arte, inclusive por não ser nem ter uma criação cristã.  Para mim, as formas artísticas onde a arte se manifesta através do cotidiano dos povos são todas da mesma importância e beleza. Tenho um apreço maior pela arte dos grafismos e arte indígena, talvez por esta descendência ser forte na minha memória emocional. 

Minha compreensão e forma de viver da arte não está separada de quem eu sou. A arte faz parte de mim e não a desvinculo apenas como um trabalho remunerado. Muitas vezes essa forma de arte é rejeitada no mundo mercadológico a que estamos acostumados, a arte como maneira de ser. 


Uma arte que não é produto de mercado e sim expressão de uma atitude para com a vida, de uma forma de se portar diante da existência, atestando a sacralidade de tudo que envolve o viver (PASTRO, 2010).


A arte dos povos indígenas é isso. Na arte indígena, através da pintura corporal, etnias diversas exprimem as fases da vida de um membro (luto, doença, resguardo, rituais de transição) ou situações comunitárias como guerras, rituais religiosos. Ela é marcadora dos ritmos e tempos da vida (VIDAL, 1978). Não é arte para ser vendida ou apenas para ser bela, nem para simples deleite de quem observa ou valorização de quem a ostenta. Uma indígena que pintou o corpo de outra não assina seu nome na obra, pois a arte não é algo descolado da vida e sim, antes de tudo, é sua expressão e seus tempos demarcados pelos elementos pintados e materiais utilizados. Os colares e cestaria são belos porque a natureza é bela e a arte já está inserida nela. 

A origem para a palavra “religião” vem do latim, que significa respeito pelo sagrado. Outra etimologia que é discutida é da palavra RELIGARE, também do latim, que significa atar. Definição para arte não é tão simples mas pode-se dizer que é algo que se comunica, transcendendo a linguagem de palavras.

Desde o princípio da história da humanidade, arte e a religião estão ligadas. Nas pinturas rupestres, na suntuosidade da arte egípcia, minimalismo da arte budista, nas catedrais góticas, na busca pela luz dos iluministas. No simbolismo do próprio divino na arte muçulmana e seus arabescos geométricos perfeitos como símbolos abstratos. Nas formas de demonstração da consciência e de comunicação do que está ao redor e dentro de si mesmo, a arte faz a comunicação direta entre emissor e receptor mesmo quando sendo representativa. 

Sendo assim a própria arte não pode ser, para o artista, a sua religião? Respeito pelo aquilo que é sagrado pra si, independente de crença, nome dado para Deus ou prática e te ata a algo que é além da compreensão da lógica e racionalidade. 

Algumas filosofias orientais dizem que Deus está onde está seu coração. Se meu coração está na arte e ela me religa aquilo que tenho de mais verdadeiro e profundo, então posso não chamar de Deus ou Deusa e sim de Arte apenas, aquilo que me transforma e transmuta. Algumas antigas escolas de ocultismo e magia chamam seus estudos de a grande Arte, obras com o objetivo de descobrir a fonte da vida, ser íntegro, concentração, descobertas dos mistérios que poderiam ser os alicerces sobre os quais repousa a felicidade do homem. 

A Grande Arte?! Nossa vida pode ser uma grande Arte! 


Quero encarar Hilda Hist

  Renata de Souza*   Há pouco tempo fui interrogada sobre o sentido da escrita em minha vida. - "Por que você escreve?" Inicia...