segunda-feira, 28 de junho de 2021

É que Narciso acha feio o que não é espelho?

 

Por Mani Ceiba

Ilustração Carol Cospe Fogo

Será? Será mesmo que faz parte da qualidade humana ser igual para ser aceito? Será que somos mesmo tão limitados que aquilo que não conhecemos ou identificamos não podemos admirar, respeitar ou pelo menos não julgar?



Quando era criança, meus pais tinham amigos gays. Eu nunca vi diferença, até que um dia ouvi um vizinho fazer uma piadinha, eu tinha uns 10 anos... Um dos melhores amigos da minha mãe, era bem mais novo que ela, o tio Roberto tinha um namorado, o tio Salomão... Eu nunca achei estranho, nunca perguntei nada sabe por quê? Porque criança não questiona o óbvio, não questiona onde se sente segura e amada! Eles eram maravilhosos comigo, me faziam cócegas e me levavam no ombro pra ver o circo. E isso é o que era importante para mim e para meus pais. Sabiam que eles eram confiáveis. Quando meu pai morreu, a primeira pessoa que veio falar comigo e me contar o que houve foi o tio Roberto. Eu não era mais criança, era uma adolescente rebelde, militante e roqueira mas louca pelo pai, a única autoridade que eu ainda respeitava! Tio Roberto me sentou no colo dele e disse:  – Rainha, tenho algo muito sério pra te contar - e chorou comigo...



Ali nasceu uma amizade que durou muito tempo...Ele que me conheceu criança, 20 anos mais velho que eu, virou meu melhor amigo... Não tinha um assunto que eu não podia dividir com ele, não existe medo, não existia julgamentos... Apenas experiência e orientação... e diversão!! Ahhh a gente se divertia!! A primeira vez que saímos juntos para a noitada eu nunca vou esquecer! Primeira regra – NUNCA MAIS ME CHAME DE TIO!! Segunda regra – SÓ PRECISO SABER QUE VOCÊ ESTÁ FELIZ E SEGURA. Um mundo se abriu para mim que eu não sabia que existia! Eu tinha amigas, as bestfriends da juventude, a gente saia, se divertia. Mas com Roberto era diferente. Eu não tinha que cuidar dele como lidava com as “amigas”. Eu tinha amizade, real e verdadeira, eu podia trocar de roupa na frente dele e perguntar se ia ou não de bota, com proteção e segurança numa mesma pessoa. 



Com o tempo, eu fui conhecendo mais do seu mundo e também dos seus amigos e amigas. A família do Roberto não sabia que ele era gay. Um homem de 40 anos, dono da sua vida, profissional com prêmios reconhecidos, que viajava o mundo, que tinha uma conduta moral indiscutível, não podia naquele momento (estamos falando dos anos 90) assumir para a família e a sociedade algo que ele era, algo que fazia parte dele porque tudo isso seria julgado de modo injusto e preconceituoso!! Ele tinha que mentir! Mentir pra mãe, pro pai... Isso o afastava mais e mais da família...E ele não era o único! Em uma festa de aniversário, pequena, no apartamento dele, eu conheci os amigos mais íntimos... Piloto de avião, engenheiro, advogado que não assumiam sua sexualidade fora daquele apartamento porque sabiam que o preço a pagar era alto demais, e a luta interna só pra ser quem se é já era dura.



Meu amigo Roberto contraiu AIDS. O mais irônico que foi de um namorado que eles estavam juntos fazia alguns meses. Ver Roberto lutar contra essa doença e perder foi duro e a família não estava lá.

Imagine alguém da sua família que ama muito. Você gostaria de saber que essa pessoa que está morrendo não confia em você pelos julgamentos que você possa fazer sobre ela?



 Um dia, com um amigo trans, estávamos indo no mercado comprar umas frutas. No caminho, cruzamos com quatro meninas de uns 15 anos no máximo com uniforme de colégio militar. Essas meninas começaram a de longe apontar meu amigo e falar coisas fortes e rir! Rir dele! Eu fiquei muito brava, quem me conhece sabe que o sangue esquenta rápido aqui dentro... Eu quis responder! Meu amigo me segurou e disse: “Não!! Só segue!” Obedeci mas com sangue nos olhos! Até ele me explicar:

- Eu vivo isso todo dia! Eu vou cruzar com essas meninas (ou outras iguais) todos os dias, em cada balcão que eu paro, em cada uber que eu pegue, em cada caixa que eu passo, em cada vez que eu pergunte pra alguém na rua que horas são. Se eu for revidar sempre e sentir raiva minha vida vai ser só isso! Eu não posso transformar minha vida, o que eu sou em apenas raiva e revolta. Já foi difícil demais assumir para mim mesmo quem eu sou. Agora eu só quero viver quem sou.



Um dia eu estava pensado que talvez o preconceito venha da inveja também. Inveja, dos sem amor, de ver que apesar de todos os não, de toda a pressão, de todo o julgamento, essa força de ser quem se é maior! O que você quis ser e não foi por medo da sociedade, da religião e deturpação de valores?

E aí você olha do lado e vê quem com muito mais motivo para ter medo vai lá e se mostra! 

Morram de inveja, porque nós vamos passar e podem rir e xingar... vamos passar assim mesmo!



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