terça-feira, 24 de dezembro de 2024

MINHA AVÓ JÁ QUEIMOU SUTIÃS

 Renata Silva*

Naquele dia 8 de março, Norma fez o que lhe era costume fazer. Acordou, tomou banho e café, vestiu uma calça jeans, uma camiseta, calçou um surrado All Star e foi trabalhar. Uma manhã inteira de aulas na escola particular em que trabalhava. História. Naquele dia, falara sobre a exploração do trabalho feminino e pensava preocupada, se conseguiria pagar as próprias despesas com o salário que recebia. Boletos, boletos... A hora do intervalo foi diferente, pensou: dia internacional da mulher. O diretor leu um texto bonito. Ela ganhou uma rosa vermelha de presente, uma caneta de quadro novinha e muitos, muitos cumprimentos, "feliz dias mulheres!". Não compreendia porque aquilo tudo lhe deixara profundamente irritada. Cobrou de si, " como posso ficar irritada com tanto carinho?" Um sentimento meio Nísia Floresta.

Já em casa, depois do almoço, uma pilha de avaliações para corrigir, diários eletrônicos para preencher, e era preciso achar tempo para responder as dúvidas dos pais na plataforma da escola. Suspirou para conter o cansaço. Um suspiro Pagu. No grupo do partido político, novamente recebeu um trilhão de mensagens, emoj com corações, babados, rendinha guipir e a saudação "feliz dia das mulheres!", em pauta, lembrar que para cada dezesseis políticos, apena uma é mulher. Irritou-se mais ainda e continuava sem saber o motivo. Talvez a voz calada de Bertha Lutz.

Lavou a louça, colocou a roupa para bater, limpou a casa, preparou o jantar e de sobremesa, um "feliz dia das mulheres!" veio do marido. Sorriu. Riso pálido, sem graça. De repente, lhe veio à cabeça Simone de Beauvoir. No grupo de WhatsApp da família corria a fofoca do assassinato de uma amiga de infância. Feminicídio. Um olhar melancólico do tipo Leila Diniz, ficou perdido no tempo.

Boa cristã que era, frequentou o culto naquela noite, com paciência concentrou-se na pregação e talvez, ainda em tom de cobrança imposta a si, considerou importante o pastor lembrar de desejar um feliz dia das mulheres à assembleia. Que ela não se Irritasse com as questões da fé! Antes de ir embora, sentiu quando um irmão deu dois tapinhas no seu ombro , uma risadinha e disse, "feliz dia da mulher!". Pena que não existisse o dia do homem" Estourou! Como Angela Davis. Não resistiu. Estava à flor da pele. Cansada do velho jogo das concessões, de agrados sem importância. Nada foi de presente! Tudo foi conquista! Deitou aniquilada.

Antes, esqueceu a flor já despedaçada em cima da pia, jogou a caneta no velho estojo de tecido desbotado, engoliu a seco o feliz dia das mulheres, pensou nos quilômetros de passeatas percorridos, nos milhares de sutiãs queimados. Os olhos rasos d'água, como os de Conceição Evaristo. Sem sono, resolveu escrever um poema. É as mulheres são muito estranhas, muito estranhas.


* Historiadora, professora e escritora

Março, 24.

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